Como games hiper-realistas estão criando novo ramo da fotografia


À medida que jogos se tornam cada vez mais hiper-realistas, uma nova geração de 'fotógrafos virtuais' está capturando momentos especiais de beleza e emoção dentro deles.






Nos últimos anos, tem havido uma proliferação de grandes lançamentos de videogames que oferecem "modo de foto", permitindo aos jogadores capturar momentos memoráveis ​​de suas aventuras.

 

Títulos de sucesso como The Last of Us 2, Legend of Zelda: Breath of the Wild, Red Dead Redemption 2, Assassin's Creed Odyssey e, mais recentemente, Resident Evil Village deram aos fãs a possibilidade de tirar fotos de uma infinidade de ângulos e com uma variedade de filtros de cores.

 

Mas o que pode ter sido inicialmente idealizado pelos desenvolvedores como uma maneira de fazer os jogadores compartilharem imagens da tela de um jogo nas redes sociais (e dar destaque ao mesmo) levou, na opinião de alguns, ao nascimento de uma nova forma genuína de arte.

 

Graças ao hiper-realismo dos videogames modernos, que agora ostentam milhares de animações faciais individuais e eventos ambientais aleatórios que se desenrolam de maneira ligeiramente diferente a cada vez que você joga, os mundos dos games evoluíram para se tornar paisagens genuinamente espontâneas e realistas que os fotógrafos podem trabalhar para criar imagens com seu próprio (e discutível) valor artístico.

 

"Acho que como você não está carregando equipamentos por quilômetros em uma rocha, as pessoas pensam que não há esforço por trás das suas fotos e que não podem ser vistas como arte", diz à BBC Culture o "fotógrafo virtual" freelancer Leo Sang, que mora em São Paulo.

 

"Mas a arte evolui com qualquer tecnologia que defina a era em que foi criada."

 

"Esta ideia de fotógrafos passando por missões inimagináveis ​​apenas para obter uma imagem está no passado agora", avalia.

 

"Um videogame pode ser uma tela tão frutífera para um fotógrafo quanto o mundo real."

 

Sang criou fotos de jogos para campanhas de marketing de grandes publicadoras de games e empresas como Activision e Nvidia e, além disso, ele passa grande parte de seus dias tentando capturar, como hobby, momentos com conteúdo emocional em jogos como Grand Theft Auto V e Cyberpunk 2077.

 

Isso pode envolver passar horas organizando cuidadosamente corpos em uma taverna do Velho Oeste para construir uma foto com uma prova cabal ameaçadora, ou fotografar um momento íntimo em que um personagem está perdido em um devaneio em meio a uma paisagem futurista de neon.

 

Muitas vezes, ele tenta fotografar momentos fugazes dos jogos que tenham uma correlação direta com a monotonia cotidiana da vida real.

 

Uma das fotos que ele considera um de seus melhores trabalhos mostra a heroína de Resident Evil 3, Jill Valentine, ferida, tendo um momento introspectivo sentada em um vagão de trem; Sang descreve a intenção por trás da imagem com a seriedade de um artista que explica uma obra sua pendurada na parede de uma exposição de prestígio.

 

"Apesar de nos sentirmos machucados pelo mundo, todos nós ainda vamos para o trabalho [ou, pelo menos, íamos antes da pandemia] e agimos como se tudo estivesse normal. A Jill sangrando me deu a sensação de uma pessoa normal olhando pela janela enquanto se desloca para o trabalho — apenas seguindo em frente apesar de tudo."

 

A cena sem dúvida captura um senso de perseverança com que podemos nos identificar e, portanto, a maneira como os videogames agora oferecem momentos genuínos de busca interior, mesmo em cenários fantásticos de terror apocalíptico.

 

Os benefícios da 'fotografia virtual'

O trabalho de Sang foi exibido em exposições de arte em Los Angeles e Londres (ao lado do colega Duncan Harris) — revelando como as fronteiras entre as fotos da vida real e as capturas de tela de jogos estão se confundindo.




Em 2018, já tendo trabalhado com publicidade e design gráfico, Sang se desiludiu com sua vida profissional e mudou de carreira para a fotografia — rapidamente começou a ganhar dinheiro fotografando shows de música ao vivo e eventos.

 

Porém, devido aos altos índices de criminalidade em São Paulo ("Era perigoso carregar uma câmera") e a uma sensação incômoda de que não poderia competir com fotógrafos mais consagrados (cujos orçamentos maiores permitiam certos privilégios, como viagens), Sang trocou o "elitismo" da fotografia do mundo real pelo mundo virtual e começou a ganhar dinheiro como freelancer criando capturas de tela promocionais.

 

Sang, que transformou um hobby escapista em um meio de vida, acredita que um dos aspectos interessantes da fotografia de videogame, da perspectiva de quem pratica, é sua acessibilidade.

 

"Para muitas pessoas, não é acessível comprar uma câmera ou manter o estilo de vida de um fotógrafo. Para outras, é muito perigoso. A coisa boa sobre a fotografia de videogame é que você não precisa de experiência acadêmica. Você recebe as ferramentas imediatamente, e é livre para experimentar. Eu poderia num instante estar fotografando em um campo de batalha no norte da França ou em uma cidade futurística de Cyberpunk; não há barreiras de entrada."

 

Comunidades de fotografia artística de videogame estão surgindo agora na internet, com amadores compartilhando avidamente fotos que tiraram dos jogos na tentativa de capturar algo único sobre a condição humana.

 

Megan Reims, administradora da GamerGram, uma comunidade do Instagram que exibe e promove capturas de tela poéticas feitas por amadores, acredita que cada vez mais fotógrafos amadores estão transformando as capturas de tela em um hobby devido às restrições impostas pela pandemia de covid-19.

 

Isso porque, com mundos de videogame que permitem escalar as pirâmides e ver o letreiro de Hollywood de perto, não poder viajar "não é um problema tão grande", diz ela.

 

Entre as fotos mais preciosas de Reims está uma que ela tirou em Assassin's Creed Odyssey, que mostra uma águia voando alto sobre uma linda paisagem litorânea. Para ela, isso canaliza outra qualidade que pode ser encontrada na "fotografia virtual": o utopismo.

 

"Tirar fotos nos mundos dentro dos videogames é uma boa fuga, já que o mundo não é exatamente sua melhor versão no momento", explica.

 

"Gosto de capturar a beleza natural do ambiente de um jogo [com minhas fotos] porque é um contraste real com o que a mudança climática está fazendo com nosso mundo real. Acho que os videogames mostram aos jovens como o mundo real poderia ser se os políticos fizessem um trabalho melhor."

 

A fotografia de videogame se tornou um hobby para Reims, de 23 anos, após a morte repentina do pai em julho de 2018.

 




Enquanto jogava a série The Last Of Us, que mostra uma adolescente e um contrabandista de meia-idade viajando pelos EUA devastado por um vírus, cada um tendo perdido vários entes queridos ao longo do caminho, ela se identificou com a abordagem crua para lidar com traumas pessoais, e a sugestão de que passar pelos estágios de luto é muito mais assustador do que qualquer monstro carnívoro literal.

 

Posteriormente, Reims começou a tirar fotos de sua protagonista Ellie.

 

Uma foto particularmente impressionante mostra Ellie em pânico com uma máscara de gás claustrofóbica; representa como Reims se sentiu completamente consumida pela escuridão após a morte do pai.

 

Mais importante ainda, mostra como tirar fotos em jogos como The Last Of Us 2 pode ajudar os jogadores a processar e compreender seus próprios sentimentos complexos — e, por tabela, essas fotos podem ter uma ressonância emocional real para aqueles que as veem.

 

"Eu não estava preparada para a morte do meu pai", admite.

 

"Mas personagens como Ellie representavam desafio e me ajudaram a superar isso. Acho que há muita arte na maneira como as pessoas capturam os jogos com suas fotos de tela; elas amam tanto os jogos que colocam seus sentimentos neles. Eles se veem nesses momentos."

 

As barreiras para a aceitação artística

Mas será que esses "fotógrafos virtuais" podem realmente dizer que suas capturas de tela são obras de arte propriamente ditas?

 

"Claro", diz Eddy Frankel, editor de artes visuais da revista Time Out.

 

"Estamos vivendo em um mundo pós-conceitual em que a ideia de um artista tem prioridade sobre a estética ou habilidade; então, desde que o conceito por trás do trabalho seja forte o suficiente, não importa o que o trabalho realmente seja."

 

"A capacidade de uma obra de arte de dizer algo sobre a condição humana se resume às ideias que ela expressa e como as expressa", acrescenta.

 

"Não importa se uma obra de arte é uma foto tirada em um videogame ou fezes reais dentro de uma lata [como na famosa obra de 1961 do artista italiano Piero Manzoni], o que importa é o que a obra está dizendo. A fotografia de videogame pode dizer algo grande, importante, emocional ou interessante? Totalmente: só cabe ao artista descobrir como."

 

Uma barreira prática para a aceitação artística dessa nova geração de "fotógrafos virtuais" são os direitos autorais. Se os jogadores tentarem capturar uma imagem usando o "modo de foto" do novo jogo de terror Resident Evil Village, a foto será imediatamente marcada com o selo "direitos autorais pertencem à Capcom".

 

Nem todos os jogos fazem isso, mas o fato de estúdios importantes como a Capcom estarem fazendo, serve como lembrete de uma das principais diferenças entre ser um fotógrafo de tela e um fotógrafo que sai pelo mundo real com uma câmera na mão.

 

Filosoficamente falando, há a teoria de que uma vez que um universo de videogame é lançado, ele se torna patrimônio público — as milhões de pessoas que o jogam, em última análise, são aquelas que dão vida ao jogo e conferem a ele um significado extra.

 

Mas a realidade jurídica é que os fotógrafos de videogames não são os donos de suas fotos — e, sim, os desenvolvedores do jogo.



"Ainda estamos em uma zona cinzenta no que se refere a direitos autorais e propriedade de nossa fotografia", admite Reims.

 

"Não podemos vendê-las. É uma pena que não haja solução."

 

No entanto, nem todo "fotógrafo virtual" acredita que eles próprios deveriam ser vistos como artistas; um desses dissidentes é Petri Levälahti, um capturador de tela profissional de 40 anos que foi contratado em tempo integral pela EA Dice depois de impressionar o desenvolvedor com suas fotos cinematográficas da série Battlefield.

 

"Eu preferiria ver as capturas de tela reconhecidas como uma demonstração de apreço pelo mérito artístico dos videogames do que como arte individual [propriamente dita]", ele argumenta.

 

"Os capturadores de tela estão reformulando a arte de outra pessoa. Quando faço uma imagem em Grand Theft Auto V, estou apenas valorizando o que a Rockstar [o desenvolvedor] fez para criar este momento. Posso levar o crédito por capturar um estado de espírito, mas a arte é toda do desenvolvedor."

 

O funcionário da EA conquistou algo que muitos fotógrafos de tela sonham: ser contratado por um grande estúdio de games para ganhar a vida tirando fotos dentro dos jogos.

 

O trabalho que ele faz para a EA Dice envolve fazer capturas de tela dos jogos para serem usadas ​​em suas campanhas de marketing online.

 

Ele também tira fotos fora do expediente como hobby. Em vez de se classificar como um artista, ele se diz um "contador de histórias".

 

"Se eu puder contar uma história com uma cena que vai além da narrativa real do jogo, meu trabalho está feito. Quero que as pessoas vejam esses jogos de uma nova perspectiva, olhando para o meu trabalho, mas também quero mostrar que, visualmente, uma cena de Red Dead Redemption 2 pode parecer tão impressionante quanto uma (cena) de faroeste de Sergio Leone."

 

Uma foto de Levälahti que sem dúvida consegue isso é do jogo Grand Theft Auto IV e mostra um casal olhando para um monólito que diz: "Paraíso".

 

A cena é poderosa em sua sugestão de que, talvez, os mundos dos videogames podem ser o mais próximo que muitos de nós chegaremos de encontrar o paraíso na Terra.

 

Mas, embora as imagens de Levälahti possam ser interessantes para refletir como um observador, ele próprio está menos aberto a especular sobre o que elas significam.

 

Pergunto a Levälahti se ele acha que os fotógrafos do mundo real e os fotógrafos de tela de jogos compartilham a necessidade de capturar o momento perfeito — mas ele é novamente cético.

 

"Os capturadores de telas estão em um ambiente controlado, onde controlamos tudo, desde a direção do sol até as animações, mas um fotógrafo do mundo real está realmente existindo no momento", diz ele.

 



"Os videogames estão recriando um momento. Eu diria que o que os fotógrafos do mundo real fazem é muito mais autêntico. Está em um nível totalmente diferente. A captura de tela mal tem sua própria página na Wikipedia."

 

"Eu realmente amo o que faço, respeito o talento que alguns capturadores de tela têm, e isso mudou minha vida, mas é importante não se deixar levar. Temos que contextualizar isso de maneira que respeite os desenvolvedores e artistas que realmente fizeram esses mundos", completa.

 

Ainda assim, Sang, colega de Levälahti, acredita que os pessimistas que acham que a "fotografia virtual" não é arte vão mudar de opinião com o tempo.

 

"Lembre-se que eles costumavam dizer que a fotografia digital também não era arte", observa.

 

"Os tempos continuam mudando."

 

Reims é ainda mais positiva:

 

"Se Picasso estivesse fazendo arte em 2021, ele faria experimentos com capturas de tela, tenho certeza."

 

"A pandemia mostrou que a captura de tela é uma fonte de arte realmente sustentável. Ela só vai ficar cada vez maior. Meu sonho seria que nossas capturas de tela estivessem lado a lado com [o trabalho] de fotógrafos da vida real em [uma galeria famosa]."

Por: Davi Silva

Fonte: g1.globo


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