sai de baixo: O FILME
Quando o Sai de Baixo estreou, em 1995, sua proposta era
diferente do que a televisão estava acostumada a ver. As sitcoms americanas –
com sua ingenuidade e moralismo – estavam em pleno auge e não demorou muito
para que esse também se tornasse um gênero perseguido pelas produções da nossa
teledramaturgia. Idealizado por Luis Gustavo e Daniel Filho, o programa era
gravado num teatro, com uma plateia ao vivo, que mesmo buscando referências em
A Família Trapo, tinha uma identidade moderna admirável, provocada principalmente
pelo texto (às vezes muito provocativo) e pela química entre os atores, que
depois de superarem a tentativa de respeitar as convenções teatrais, se
entregaram a uma leveza e uma frequente quebra de todo o tipo de parede. Era um
humor direto, físico, tolo, mas que no teatro encontrava sua identidade
insuperável.
A decisão de levar o programa para o cinema veio depois de
uma passagem intensa pelos especiais produzidos para o Canal Viva. Passados
muitos anos fora do ar, quatro episódios foram montados para uma comemoração e
suas exibições revelaram que a história da família Matias-Antibes ainda tinha
coisas interessantes e divertidas a dizer. A trama desses episódios – como em
todos os outros – pouco importava, de fato. A relação entre os atores e a
plateia, tão próxima, tão quente, fazia com que tudo transcorresse com uma
organicidade excitante, revitalizando o carinho que o público sempre teve com a
atração. O filme, então, passava a ser uma incógnita justamente por ser incapaz
de reproduzir a mesma comunhão.
Sai de Baixo – O Filme é apresentado como “uma chanchada
escrita por Miguel Falabella”. Não foi a primeira vez que a palavra “chanchada”
foi usada para atribuir características ao universo da série, mas é bastante
provável que o abraço definitivo no gênero tenha sido uma forma de compensar a
falta de seu grande “interlocutor”. Praticamente todos os elementos que
construíram a reputação do Sai de Baixo estão ali, mas a falta da plateia
parece aumentar em proporções questionáveis o descolamento do senso de
realidade que não era necessário quando tudo acontecia na tela da televisão. O
filme, infelizmente, parece uma saída ruim para manter vivo o espírito do
programa. Talvez o programa, na TV, ainda passasse muitos anos sendo relevante.
No cinema, ele parece constrangido e desnecessário.
O roteiro segue a mesma linha de construção dos episódios: a
família precisa se dar bem, mas vai ter que enganar umas pessoas para isso.
Pedras preciosas, malas de dinheiro, heranças... Quase sempre tudo ficava
dentro desse nicho. Com as participações de Aracy Balabanian e Luis Gustavo
sendo reduzidas, coube à família Antibes protagonizar a maior parte do enredo.
Caco e Magda (Marisa Orth) precisam atravessar o país com malas carregadas de
pedras preciosas, enquanto fogem de algum parente perdido que nunca havia sido
mencionado antes. Tom Cavalcante retornou ao elenco para viver Ribamar e, em
grande parte, a ostensiva necessidade de valorizar sua presença acaba sendo um
dos grandes problemas do filme.
Cavalcante saiu do programa na quarta temporada e o
humorístico permaneceu no ar por muito tempo depois disso. O trabalho do
humorista com Ribamar se dividia entre ótimas tiradas (muitas vezes dispostas
aleatoriamente) e dezenas de caracterizações. Para o universo teatral do
programa, tudo se encaixava muito bem. Estranhamente, a transposição para o
cinema, em muitos momentos, parece transfigurada, desconfortável. Tom usa de
todos os seus trunfos... Ele vive uma das parentes de Ribamar com uma
caracterização tosca, abusa de caretas a cada frame, se correlaciona com a
chanchada pretensa do roteiro até o limite das expressões faciais, mas seu
humor “descacetado” agride o andamento da história, não se correlaciona com os
outros e atrapalha os momentos em o personagem se apoia mais em texto,
justamente quando a interação com Caco e Magda flui de forma natural.
Falabella tem uma compreensão do que está vigente no mercado
e na cultura pop; e usa isso em próprio benefício algumas vezes. Marisa Orth é
– como sempre foi – a pilastra que segura tudo em pé. É impressionante ver como
ela retorna para a Magda com uma segurança absurda. Já na TV, ela era como um
coringa, aproveitável em 99% das cenas em que estivesse (mesmo que não
falasse). Aqui, ela segura as pontas da pseudotrama que conduz o filme e ainda
entrega com eficiência suas tiradas estapafúrdias. É muito admirável ver uma
atriz que descobriu o que é ser um fenômeno e não passou o resto da carreira
rejeitando esse privilégio. Marisa não tem medo de Magda.
Para quem acompanhou a série, o filme traz algumas questões
interessantes. A Vavatur retorna depois de ter sido a empresa que guiou os
acontecimentos do programa em seus dois primeiros anos. Caco e Magda tiveram um
filho na 4ª temporada (depois que Orth engravidou) e durante algum tempo, ele
foi um boneco de vinil controlado eletronicamente. Mais tarde, o elenco se
livrou do boneco e o jovem Lucas Hornos viveu Caquinho por alguns meses, até
que a justiça brasileira impediu a continuidade de sua participação, num surto
de censura que atrapalhou também outras produções da Globo. Depois disso, o programa
resolveu não trazer Caquinho de volta e os personagens agiam como se Magda
nunca tivesse engravidado. Agora, no filme, é a primeira vez que Caquinho
retorna, sendo vivido, então, por Rafael Canedo, que já tinha trabalho com
Falabella em Brasil a Bordo.
O retorno de Ribamar e Caquinho segue a mesma métrica de
seus desaparecimentos: não há explicação para terem sumido e nem voltado. O
cargo de empregada da casa segue sendo problemático. É fato que Márcia Cabrita
tinha conquistado seu lugar de membro vitalício do elenco, mas sua morte
prematura em 2017 obrigou Falabella a reescrever tudo. Cláudia Jimenez
(“mitológica” na primeira temporada da série) teria aceitado voltar, mas leu o
roteiro e voltou atrás. Tudo precisou ser reescrito novamente, dessa vez
incluindo também Cibalena (Cacau Protássio), que acabou ficando com a posição.
Cláudia Rodrigues, que viveu a empregada nas duas últimas temporadas, não foi
cogitada (a atriz sofre de uma severa esclerose múltipla).
As dificuldades da produção foram sentidas (Luis Gustavo
também se ausentou por problemas de saúde). A prometida chanchada escrita por
Miguel não tem só a ingenuidade e pobreza conceitual do gênero, mas um
desequilíbrio considerável em todos os aspectos técnicos também. A montagem do
filme é confusa, o som é desnivelado, há uma escuridão incoerente em algumas
sequências e a icônica sala do apartamento de Vavá não foi reproduzida. Em dado
momento Caco quebra a quarta parede – como fazia no teatro – e faz piada com as
dificuldades financeiras da produção. Verdade ou não, é como se a chanchada B
anunciada no roteiro fosse também invocada no resultado técnico final. Sai de
Baixo – O Filme parece feito às pressas, sem aquele charmoso ponderamento
social que já pingava na produção televisiva e que Falabella aperfeiçoou em
outras produções como Toma Lá dá Cá e Pé na Cova.
Para os que conhecem o programa de TV e esperavam ansiosos
para gravar episódios no videocassete, o filme tem seus momentos de resgate
emocional. Para os outros, pode ser só uma comédia ruim, levado às telas com o
romantismo de uma visita a um gênero que está, por razões legítimas,
ultrapassado. As chanchadas são parte da nossa história, mas o que a série Sai
de Baixo fez foi flertar com o passado para construir uma forma original. O filme,
infelizmente, é uma piada perdida, daquelas em que a expectativa pode fazê-la
parecer imperdível, mas que no meio esquece como contá-la.
Link: omelete
Por:steffanie Victoria Bernadino
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