Homem-Aranha: Longe de Casa
Depois dos anos, em nome do bom
relacionamento, a pessoa aprende a não projetar suas expectativas nos outros.
Sempre imaginei ver Mysterio no cinema como um personagem ilusionista de
Missão: Impossível, enganando tanto heróis quanto espectadores com as reviravoltas
de sua realidade forjada. Evidentemente não dá para esperar, porém, que Jon
Watts se manifeste como o novo Brian De Palma, embora o próprio De Palma
tivesse se firmado como um grande reciclador de suas referências.
Em Homem-Aranha: Longe de Casa,
Watts foca no que Mysterio (Jake Gyllenhaal) e suas ilusões têm de mais
gráfico, não necessariamente no seu potencial mais narrativo. Os leitores das
HQs vão
reconhecer, num par de cenas do herói encurralado, aqueles quadros
claustrofóbicos em fundo todo preto em que o Aranha (Tom Holland) fica preso
nas vertigens de Mysterio, sufocado por imagens que trazem à tona traumas do
inconsciente. É o fan service esperado, e que sabe aproveitar bem o caráter
cartunesco de situações e de caracterização de personagens. No mais, a boa
tradução visual da estética dos quadrinhos é um legado inegável de Sam Raimi
que em nenhum momento, mesmo nos filmes estrelados por Andrew Garfield, foi
escanteado dentro da franquia.
Esse legado atinge em Longe de
Casa um equilíbrio interessante entre humor, cartoon e empatia. Dos filmes do
MCU, talvez seja um dos que melhor se organiza em torno de um elenco de tipos
semicaricatos, em situações que se prestam à gag mais facilmente do que num
Doutor Estranho ou um Thor. Na falta de uma dramaturgia mais elaborada ou menos
didática e imediatista, personagens ganham propriedade e vida pelo que têm de
cartunescos. A atuação de Jake Gyllenhaal como Mysterio, por exemplo, explora,
sem estereotipar demais, o lado mais ridículo do personagem para tirar disso
sua força (o que, comicamente, revela muito sobre todos os outros papéis que
Gyllenhaal faz em chave de overacting nos seus filmes "sérios").
Ao mesmo tempo, na escalação, a
tipificação de personagens se concilia com a preocupação com a representatividade.
Sempre que a turma de Peter Parker entra num ambiente, como um saguão de hotel,
notam-se os negros, a garota com o lenço cobrindo os cabelos, o contraste
visual de Ned e Betty, o perfil de imigrante novo-rico de Flash Thompson. A
escola Midtown do MCU faz jus ao Queens da vida real (recomenda-se o
documentário In Jackson Heights para entender o tamanho do caldeirão de
culturas desse bairro de Nova York), num registro que evita a armadilha do
panfletarismo político justamente por partir do lúdico.
Por: Davi Silva
Fonte: omelete
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